Agora encontrava-se mais calmo. Apesar de não ter tido fome, comer ajuda sempre a uma espécie de moleza com que se sente confortável. Não se obriga a contrariar a ausência de desejo, é um movimento natural da inércia a que se devota diariamente.
Antes, no desespero de não ter conseguido arrastar tudo, suava, muito, limpando a testa com a ponta dos dedos e logo as costas das mãos, que ganhavam assim reflexos de gordura sebosa. E era também como se suasse por dentro e o pequeno dilúvio arrastasse qualquer pensamento possível. Concentrar-se em tão turbulentas águas?, irrealizável.
Soluçou sem som, como os choros de uma criança depois de chorar muito, já no final da resignação. Teria sido capaz de ter dado um grito, ou esmurrar a parede com os nós dos dedos. Não se feriria, claro. A raiva traz sempre uma capadura de protecção, desabituada. Não fosse o lembrar-se ter visto nalgum dia um carrinho de rodas, no qual Adriana costumava amarrar a mala enorme para viajar.
Funcionara, e tudo estava bem. Jacinto fazia dissipar com as últimas colheradas de iogurte os momentos em que sofrera com o medo. Ele sabe que os sonhos são estados em que as acções cumpridas se fazem com um zelo e um pormenor inigualáveis, tudo envolto por uma precisão e naturalidade que não existe na vigília. Há, porém, uma total ausência de fins compreensíveis. Jacinto pensava assim, e ponderava se não teria experienciado, não pela primeira vez, um estado misto de vigília e sonho.
Quando acordara essa manhã, tudo parecera igual. O som pouco distante do mar, as ondas subindo às costas umas das outras, e todas galgando as rochas. A bicicleta do Jorge passando ao largo. Um grulho ou dois de uma pardela ou um painho. Estão apenas de passagem nestes ermos, mal acabe o Verão não se ouvirão mais. Dera-lhe a espertina. A diferença marcante residia em detalhes quase invisíveis. Mas Jacinto estava treinado. Treinara durante anos. Em silêncio, em segredo, afastado de todos, um ideal muito pessoal, impartilhável. Por exemplo, ontem. Das portadas-janelas da sala via-se todo o céu por sobre o mar. Adriana e ele estiveram durante umas horas sentados no sofá. A ler, a beber mazagrin e a ouvir uns discos novos. Um momento típico de fim de Verão, inócuo, de artigo anódino de revista anódina. Sobre o mar, nuvens.
Um olhar treinado vê sempre mais além, entende textos onde outros vêem gatafunhos. Estratocúmulos pouco consistentes pairavam sobre o mar, e um avião passara, cortando-os e fazendo um ângulo agudo apontando a noroeste. Pouco depois, antes de esta esquina aparentemente adregada se dissipar, um bando de pardelas voava, naquele planar que lhes é costumeiro, interrompido por um agitar de asas brusco e curto. O bando compunha-se num voo triangular e encaixou nessa esquina. As barrigas brancas num corpo negro lembravam as ondas rebentando à noite nos rochedos ao largo da praia, bruscos brancos na noite. Entenda os sinais quem puder. “Os pássaros são a força inspiradora com que os homens desvendam discursos sábios e prevêem muitos êxitos antes de ocorrerem no seu esplendor.” Assim o diz Hildegarda de Bingen no seu
Livro das Subtilezas.
Na sala, descrevia sempre os mesmos gestos, com pequenos maneirismos diversos, como se fosse obrigado por uma força magnética a ao sair fora de certos limites virtuais, de uma coreografia ritualista. A rotina ou a memória garantiriam uma maior segurança, confiança, quem saberá, da solidão que o oprimia. E esta manhã não tinha sido diferente. Não era aí que estava a diferença.
É dos mais fecundos momentos o da praia do retorno dos Sonhos. É já manhã, o corpo e a mente preparam-se para acordar e oferecem um pequeno entrementes que impeça a preocupação da aterragem. Uma história inevitavelmente a interromper, ma mesmo assim que possui mais que uma ou duas sementes aproveitáveis para o resto do dia, ou quem sabe, com sorte, durante mais tempo. Jacinto lera numa revista qualquer que os sonhos se processam apenas nos últimos segundos do sono, por isso nunca terminavam. Fazia sentido. Mas também sabia que depende da natureza do sonhador o que eles podem garantir.
Foi tudo rápido, exactamente com a velocidade que é peculiar dos sonhos. Como se fosse um hábito, escolhera o utensílio correcto, fascinara-se num breve segundo pelo reflexo limpo que fazia com a luz que entrava pela cozinha (lembrava-lhe um relâmpago de bom auspício, como se precisasse de tempestade para velejar), retornar ao quarto, debruçar-se sobre Adriana e segredar-lhe o que deveria ter segredado há muito. Ela não acordara. Como uma estátua respirando num sonho. Minha estátua de marfim, sou teu Pigmalião. Marfim, alabastro, lírio, nívea, alvura, bragal, ...ébano. Não, claro. Não é distracção de Jacinto. A comparação tinha sido tola. A pele de Adriana em nada se aparenta ao marfim. Tem a cor e a força dos troncos dos zambujeiros em frente à casa. Crestada de nascença, era uma mulher que ostentava sempre o que o sol tem de melhor. E ficava-lhe bem o último colar vermelho. Um quase imperceptível contraste...
den ewigen Schlaf schlafen.
É notória a elasticidade do conceito de solidão. E se existem muitos medos humanos, nenhum é tão assustador como o é a solidão absoluta, além-humana. Independentemente da companhia, na curva da morte. Que conforto pensar que não estamos sozinhos. Como se uma montanha rodeada de fantasmas ganhasse uma maior vitalidade. Montanha à beira-mar e fantasmas de aves brancas que fazem o ninho em despenhadeiros.
Ela vestida de Eva e eu de Adão, estreámos a areia da praia mais próxima. Nem as patas de aves estavam marcadas na areia seca. E seriam as nossas pegadas também as últimas a serem apagadas mais tarde, já o sol mergulhado
Este canto do mundo quando as nuvens se engrossam como vacas grávidas de vermelhas tempestades escondidas, e quando troveja, troveja mesmo. São fortes e passageiras as chuvadas, e temos sempre medo de nos molharmos
Os contornos das nuvens brancas eram nítidos nas frondes, mas na parte inferior, na base, graduava-se num azul esbatido como o do próprio céu, fundindo as fronteiras numa inconsistência dúctil.
Foi preciso que o vento atravessasse uma lança pela cabeça de um efebo amaricado para dar nome a uma flor?
Na noite anterior, Adriana tinha-o recebido ternamente. Não fora a vez mais apaixonada em que se enlaçavam, decerto. Jacinto não acreditava que os fogos aguentassem o fervor durante muito tempo, mas acreditava que se pudessem manter acesos de alguma forma. Na noite anterior talvez não houvesse amor, mas ternura certamente. Adriana recebera-o, e ela aceitara ser recebido.
O abismo que Adriana fora há muito tornara-se seguro, demasiado seguro talvez. Enseada Amena. Nada mais. Os marinheiros sem medo. As sirenes roucas.
Dedit abyssus vocem suam. Uma voz poderosa, feita de temporal amarrado às rochas, apenas vinha do outro lado da casa. Há duas semanas que não trovejava. A segurança era absoluta nestes ermos... da sala podem-se ver pedras amontoadas ao acaso que se queiram passar por muros. São apenas baixas barbacãs antepostas ao grande abismo... Segurança absoluta. Mas nunca das tormentas que rebentam por dentro.
O vento acabava de curvar, afastando-se do Estio. Os jacintos à porta de casa estremeceram. E Jacinto segue pelo passeio, sem se aperceber da última consonância.