Corpo de texto: fragmentos.

segunda-feira, fevereiro 19, 2007

Tosse Convulsa. Biclicletas de fruta, magnólia entre detritos... Os braços do sol.

Partíramos pelas colinas para chegar à última colina
onde repousam os braços do sol.
Ao chegar à última colina,
aprendêramos que só depois do último vale
repousavam os braços do sol.
No fim do último vale
vislumbrámos as altas montanhas,
em cujos altos repousavam os braços do sol.
Depois de esculpidos e escalados todos os cumes
estendia-se o mar
e nele flutuavam, salpicando-se em brincadeiras e estilhaçando-se em radiâncias
os braços do sol.

Tosse Convulsa.

Faz tu as regras, eu faço a batota.

Tosse Convulsa.

Mostra-me a minha, eu mostro-te a tua.

terça-feira, março 14, 2006

Trovoada. Um homem que avança sobre o fogo.

Já lavrava o fogo fazia três dias quando o homem por aqui chegou. Não obstante as várias corporações de bombeiros investidas nos vários pontos do incêndio, nada parecia fazer vergar a sua força e insistência. O homem veio a pé, subindo pela encosta com um longo casaco, quase um sobretudo ao longe, que parecia quente demais não só para o clima como para a situação presente. Dois dos aldeões desceram, aproximando-se dele, esbracejando em demasia e perguntando alguma coisa, ou admoestando-o ou dando um simples e redundante aviso, inaudível onde nos encontramos. O homem respondeu, num som mais alto do que se esperava de alguém que assim viera subindo o monte sob aquele calor.
- Não, não sou casado.
Os rostos dos aldeões pareciam multiplicar a estupefacção ao se virarem um ao outro, e foi hesitação o suficiente para o homem atravessar por entre ambos, continuando a subida, em direcção à primeira frente de fogo.

Strafkolonie. A flor nupcial.

Numa terra muito distante daqui há um himeneu absoluto permitido por uma espécie extraordinária de flor. Esta é uma casta rara de união, exclusiva, definitiva, quando o amor é inabalável para todo o sempre e até ao fim.
Na cerimónia, cada um dos noivos ingere uma das duas flores desta espécie, que nascem gémeas de um só estame. As propriedades desta planta levam a que sobreviva no interior dos corpos dos esposos e que se mantenham ligadas por qualquer subtil e invisível perfume... Na morte de um deles, a flor que vive no outro liberta um veneno grácil e, assim, a morte une para sempre os amantes...

Montesinos. Dário. Carta a Eduína.

Seria bom, de vez em quando - mas apenas ocasionalmente, porque a salvação a mais torna-se uma dependência tristonha e enfraquecedora como outra qualquer - podermos mergulhar num rio bem fundo, e encontrar uma cidade nesse fundo. E habitaríamos essa cidade como bem nos aprouvesse, com papéis escritos só para nós, a pensar em nós, tão perfeitos e tão bem delineados com a nossa verdadeira natureza que nem nós próprios os saberíamos engendrar... Muitas vezes dizemos em segredos e surdinas o que desejaríamos ser ou ter ou ver ou ler ou rir, mas sempre nos enganamos. E a nós próprios em primeiro lugar.
Ou então, e no seguimento de uma grande tradição que vai até banquetes de filósofos mal divertidos, se quisermos acreditar nas histórias das metades que faltam, encontrar a tal outra pessoa que nos completaria num único, uno e individo ser superior. Mas essa busca é incessante e sempre errónea e é isso o que dá gosto e interesse ao labirinto e à corrida que se passa lá no interior, não é?
Ou então, seguir linhas de sonhos mais básicos, como acordar de toda a ilusão, descobrir termos sido adoptados e os nossos verdadeiros pais resgatarem-nos da banalidade, ou sermos raptados por alienígenas benfeitores e iluminadores, ou encontrarmos Deus - ou um seu sósia - num desconhecido por acaso no autocarro, ou levarmos a cabo aquela aventurazinha meio badalhoca que detestamos quando acordados e sociais mas que suspiramos por ela nos recessos mais escuros dos cantos dos becos das grutas mais fundas do nosso ser...
Ou simplesmente abrir a janela, olha para o reflexo da rua que conhecemos invertido e que se parece com nada do que conhecemos e é a saída única, e sentirmos o canto ensurdecedor e contínuo da cigarras, e a brisa na testa e saltar para aí, pairando, flutuando até atingirmos o limiar das portas giratórias que se nos oferecem a cada passo e a cada escolha da semana.
Quantos exércitos de nós próprios precisamos para nos vencermos a nós, e erguermo-nos com novos poderes e entendimentos. Não sei como, mas acordarei mais tarde ou mais cedo, ou assim planifico até adormecer de vez. E largar este meio-sono, em que oiço os sons lá fora mas não participo deles.
Quero tornar-me na Aranha Mestra dele: prendendo, vítimas, as estórias dele para um banquete carnificinioso, cuspi-las de volta a um estômago mais forte, e cobrir tudo de tessituras coerentes que façam parecer tudo como parte de um Todo maior, que sempre lá esteve mas não víramos antes. Talvez seja essa a janela de outrem que posso escancarar e dar o passo que preciso.
E fiquem-se mais uma vez bandos de beijos com sabores de frutas e gelo por sobre as tuas mãos.
Liberta-te, acende o chocolate, esquece o sítio onde estacionaste o carro, e vai a pé até nde querias chegar e chegarás.
P.S.
Sabias que os pombos-correio não vão a lado nenhum? Antes voltam aos donos e aos pombais a que pertencem, depois de terem sido levados pelos correspondentes?

Montesinos. Dário. Ida ao "Terraço".

Dário sentava-se no sofá da pequena sala. Já se tinham passado algumas semanas, talvez meses. Era difícil medir o tempo em ócios. Tinha comprado um CD da colecção “Músicas de Trabalho”. O sétimo volume, que abrira há minutos, compilava canções de pescadores do alto mar, da costa Oeste. Algumas das gravações foram feitas com uma tecnologia pobre, tentativa, obsoleta. Mas num local e em condições impossíveis de reiterar. A dado momento, foi assaltado por dois versos, transcritos também no livrito que acompanhavam a edição

Vieras para ficar
Como nós
Nestas águas pescaste
Com tua voz


Havia uma mensagem ali. O código não era claro. O telefone tocou.
_ Dário?
_ Mm.
_ ‘Tá?, é o Gustavo.
_ Eu sei.
_ Casmurro, como sempre. Anda, it’s yer lucky day, me mate. Estamos no Terraço e vamo-nos esquecer das mulheres.
Absorto em nada, Dário concordou e desligou. Acabou com uma sanduíche de paio que tinha deixado a meio pela tarde, e um último resquício de sumo de uva numa garrafa de vidro – uma das sodas BB, já não no mercado, com aquelas rolhas que se soltam com um trapézio de metal e que resgatara da casa de Heloísa – e procurou as chaves de casa. Estavam num casaco negro comprido que lhe chegavam aos joelhos, que resolveu levar, depois de ter visto a morrinha pela janela.
Uma neblina húmida que se cola à pele e à roupa indiferente à superfície distinta das coisas deixou-o todo molhado naquela não tão pequena viagem entre o apartamento e o Terraço. Cabelos, as mãos, a face, tudo ensopado. Mas se alguém perguntar «está a chover?», não sabemos o que responder. Talvez, com falsa segurança, «não, não está». Para que serviria este encontro? Na subida, antes de chegar à Calçado do Combro, a resposta à pergunta mental que tinha feito seria «sim, chove». Poças começavam a formar-se nas mossas do alcatrão e escorriam lentamente pelo lado dos passeios. Serviria isto tudo para algo destrutivo, e o problema estava em se decidir o que seria destruído. O tempo piorava. Aliás, piora cada vez mais, parece que o clima já não obedece a uma certa contagem de tempo. Em português, as palavras coincidem, mas o tempo não é coincidente de forma alguma. Tinha de descobrir o que era essa coisa ou vítima o mais depressa possível, pois após a destruição próxima, nada a resgataria à natureza completa anterior. Velhos contos confirmariam estes divórcios entre meses e chuvas destrinçando verdades romanceadas e belos poemas que esclareciam o funcionamento ou até o desconcerto do mundo. Hoje, Cronos e outros deuses abandonaram os países e habitam as caves mais escuras no fundo das nossas cabeças. Ou então lojas de brinquedos baratos de plástico que com dois ou três movimentos incapazes de serem elaborados por um adulto se transformam noutra coisa, um dinossáurio talvez, ou um robot que se parece com um lagarto Jurássico. Não identificava nada, e sabia que tudo se perderia.
Chegou finalmente ao Terraço. Um homem com a pele em profusão de rugas quase imperceptíveis nas mãos e na cara, que lhe dava um aspecto de se cobrir de pergaminho, sentava-se numa das mesas mais afastadas da porta. Era bem mais velho que Dário, mas conheciam-se bem. Em momentos mais bebidos, talvez até se tratassem por “amigos”. Sentava-se ao lado de outro homem, ruivo, que jamais tinha visto por ali.
- Então, Sebastião? Tudo bem?

Tosse Convulsa. Divagações no vento norte.

De Lisboa fugimos para uma praia já
na volta da curva, protegida pelo vazia
que se encontra no Inverno. Uma pequena
fuga em forma de verão só nosso, num
amor que não chega a amor e vai além dele,
um amor todo segredo e mentira, mas justo.
Na condução, trocam-se palavras, e conceitos
desusados, preenchendo os medos de
nos termos que conhecer de novo cada
vez que nos encontramos de novo. Trocamos
ideias e retalhos de frases espirituosas,
voando de cérebro em cérebro como a gripe
que parece ir subindo uma rua e chamando
às portas das casas como antes faziam (hoje
menos) pedindo pão por Deus. Deitados na praia,
fazemos por construir postais de fotografias de
gosto dúbio, canções de música popular portuguesa
e romântica, vulgo, foleiras. Oblações com areia na
roupa, meios-sonos que não se instalam, e o
proverbial silêncio que se ergue com o ruído único
do mar, filtrando onda a onda os evos que se
encavalitam, acumulam, se apagam em sucessão.
Falamos mais um pouco então, com os dedos, as
línguas, as pestanas em borboleta, os pés, calçados,
em paralelo, os corpos todos, mudos e quedos.
Retiramo-nos, pelo trilho deixado por máquinas
e marés, pelas sombras largadas e lentas das cascas
de animais marinhos. Até ao café, onde está o cão.
E o cão segue-nos, não só dócil como também
servil, e é isso que me faz não gostar de cães,
implorando amor de barriga para cima, solícitos
com o seu longo e intratado pêlo enroscado e
cheio de pedaços de coisas já vivas. Não gosto
dessa solicitude porque ecoa a minha, que acabei
de retornar de um canto de praia, onde me
enroscara a ti, de barriga para cima, de olhos
fechados escutando o nada, o sol, a tua mão
passeando-se no meu rosto, barba, lábios, desmanchando
areia e sal na pele. Implorei sem palavras, como o
cão, e agora voltamos outra vez ao estranho
jogo, de regras livres, em preencher um vazio
imenso que queremos que continue,

sobretudo,

vazio.

Tosse Convulsa. Três poemas pelas terras do Amor. 3: Tudo o que quero.

Uma luz que afastava as sombras que insistem em fazer-se escorregar pelas superfícies que são tudo o que me resta de anteriores saldos negativos de amores.

Não te quero pedir nada, nada.
A não ser que fiques comigo para sempre.
Não quero que me dês nada, nada.
A não ser que te esvazies toda só para te engolir.
Não te prometo nada, nada.
A não ser ceder o espaço que existo para que tu o ocupes.
Não quero que esperes de mim nada, nada.
A não ser que eu esteja sempre à tua espera e tu de mim.
Não quero que me toques sequer.
Quero que me respires e bebas e te engasgues comigo.
Não quero que te dês.
Quero que já tenhas sido dada e eu te roube toda.

Não sei porque não consigo escrever certas palavras.
Talvez seja porque já sejam ditas mas não conheças o idioma ou eu o não saiba traduzir.

Ricardo Reis, um outro que preferia dizer pouco, disse:

«Quer pouco: terás tudo.
Quer nada: serás livre.
O mesmo amor que tenham
Por nós, quer-nos, oprime-nos.»

Nós não queremos amor, porque temos ainda medo dele, de outro amor, de outros amores.
Nós queremos amor, mas um amor simples, que não se esvai tão rápido, porque se imiscui por nós lenta e profundamente.


Só quero que seja rápida a lentidão com que desejas.

Tosse Convulsa. Três poemas pelas terras do Amor. 2: Heráldica do Amor.

A tua pele cálida, campo de marta-zibelina, sob um luzeiro inerte
torna-se invertida, contra-arminho,
dividindo-se em reluzentes quartéis, atravessada pela
cruz de santo André, aspas em goles refulgentes na negridão e amplitude
do meu abraço esmaltado a sable, onde das três vezes que te visito
três besantes vinculo.
De na alfombra chã pascente a passante,
a visão da tua coroa negra timbrada de cheiros musgosos,
paquife espraiado por toda a infinitude dos meus gestos: fazes-te-me.
E vibram-se-me as cordas,
agora a vieira abre-se, agora as bagas da moura estalam, agora a cruz a evaporar-se gamada
por poros, bocas ávidas e cerradas a um só tempo,
de grifo, inscrito nenhures.
Latejam-me as têmporas,
as garras afiancam-se nos penhascos do teu ombro,
rampante,
montante,
saltante,
trepante.
Cabreio,
pões-me lampassado e arfante.
Aguieta voante de olhos-adaga, a tua cabeça coronela aproxima-se, bicada:
lábios blaus de Melusina mortífera num corpo pingado em sinopla
(pântano ou fogueira?).
Amparo o golpe com os braços, sopeso o manteler nas minhas mãos,
de arruelas rosas e rompentes.
Agora irado, quinante, caçante – apanhar-te-ei, apanhar-me-ás?
“Dia da Graça, o da caça e do caçador”.
Já não nada entendo, onde estamos e a quem esta perna pertence, decepada e liada a dois
/corpos?
Os dois olhos, um áureo e outro argênteo,
deitados nos veiros, glandes alaranjadas e púrpuras, lacrimosos e
blasoneando as vitórias, e dessalando quatro montinhos brancos em quartéis:
nova cruz, de Malta, animada, desabrochando em trifólios vivos,
eis que os frutos húmidos pendem alimentícios e brandos,
carapeto nas minhas blandícias, fugente das minhas travessuras.
ajunto à panóplia a que me obrigo novos escudo, tarja
e elmo de longo coçar despenteando de oliveira,
mas quedar-me-á
partido, cortado, fendido, talhado, esquartelado ou franchado, pelo teu curto
e morboso alfanje?

Tosse Convulsa. Três poemas pelas terras do Amor. 1: Amor, como verbo demasiado transitivo.

Três fermosos outeiros se mostravam na deleitosa ilha
Luís de Camões


Amor parentético
Amor lacustre
Amor hercúleo, ecúleo
Amor abemolado
Amor atro
Amor extremo deplumado

Amor ectásico
Amor cerneiro
edace, fleumático e acamado
Amor lapídeo
Amor sonial
Amor às terças e roaz

Assexo amor
Amor alhete
Amor eufráctico e estival
Amor pécten
Samba nilígeno
Litencantropia de amora

Meu pantógrafo
Pantafaçudo
j’ansas de mel de gerebera
Amor hosco, fescenino
rol de estevas onde durmo.

segunda-feira, julho 11, 2005

Trovoada. Luz para corredores em construção.

O tempo. Compare-se com areia por entre os dedos, água de um rio passando, nuvens desfiando-se, o tempo não deixa de ter as suas próprias linhas de carril, nas quais mais nenhuma carruagem é compatível. Todos temos o nosso pequeno lugar reservado, e não nos podemos apear antes nem depois da paragem para a qual comprámos o bilhete. Ninguém nos prometera que seria uma viagem cómoda. E o homem com as sandes já demora muito a retornar....

Montesinos. Fora de Vitrúvio. Reguengos de Vidoeiro.

Este endereço seria para os lados de Reguengos de Vidoeiro. Ora o próprio nome da vila conservava em si as pistas para entender o que teria ela a oferecer ao visitante esporádico: um pequeno palacete que segundo as bocas do local era onde o rei costumava passar uns dias aquando da sua passagem, o que se duvida, seria mais de qualquer dos seus administradores marqueses, ou se calhar apenas condes; e os vários renques de bétulas que se espalhavam pelos muitos outeiros ali à volta, tão antigos que já nem se dava pela falta de naturalidade da coisa. Era precisamente à saída do povoedo que se encontravam os velhos e abandonados celeiros. Desde há anos para cá que o progresso passava ao longe, para lá das coutadas dos grandes senhores que grandes continuaram, enquanto os pequenos, uns definhavam, outros minguavam, para lá do que se veria daqui do rossio, lá onde se escutava o ramerrão dos carros passando pela estrada grande. Chamei-lhe rossio por respeito para com as gentes destes duvidosos reguengos, já que se tratava tão simplesmente de um côncavo no macadame preto e branco, ao acaso reparado, em frente de um comprido edifício que albergava, a uma só vez, o café, o talho, e a junta de freguesia, e de onde partiam a estrada alcatroada que nos levaria de volta ao mundo que se pauta pelo calendário actual, e mais dois ou três trainéis para sabem lá as suas almas. A carestia era grande, garantia a gentiaga, e ala moço era já santo e senha há décadas.
Era por um dos lanços da estrada, um caminho que apenas o era pelos séculos de pés de homem e besta, carros de bois, motorizadas e o ocasional automóvel, que se alcançava o celeiro que buscava: todos na taberna me indicavam saber onde eram, a falta de desconfiança deles só se explicará pela desistência com que pareciam mover-se no balcão.
O orgulho deste povo era o grande tamariz que se erguia sozinho por entre duas lapas, nos confins do terreno do “palácio”: resquícios de um tempo em que os nobres os plantavam de forma a marcar o macho nascido no seio da família.
Assobiou uma volatina para acompanhar os passos e desapareceu por entre as árvores....

Tosse Convulsa. "Dizes que sim como o burro"

Dizes que sim como o burro, que grita “iá, iá”
e não pensa e não deita fora o fardo que leva
às costas. Os segredos são perigosos e nocivos
à saúde: são carcomas que infectam por dentro
quem os tem. Encolhes os ombros, assinas o
despacho pensado que se, se, se, se e todos esses
ses acumulam-se como um tambor de vidro de
serpentes, ondeando umas por cima das outras
destilando veneno que de nada serve a ninguém,
apenas a ti-mesmo, acumulando-se no fundo,
fazendo subir o nível de veneno até aos artelhos,
ou mais, até te afogar em veneno, e ao respirar para
não te afogares, arfas, inspiras, esbracejas como um
louco, consumes mais ar que o que te cabe na conta, e
continuas a zurrar, a zurrar sim e sim e outro sim,
e é com esse falso sim na boca, que de nada te serve,
que serves aos outros, que morres, sob o fardo.

Montesinos. Vitrúvio. Clima. O circo-íris.

Nesse momento, olhei para o alto. O sol estava mesmo por cima de mim, um sol poderoso de meio-dia, como um reflexo de glória no fim do trajecto do meu olho pineal. Tive que cerrar as pálpebras à volta dos olhos, com a ajuda de toda uma ondulação da face que mos protegesse da luz directa. E então pude vê-lo: à volta do sol, num perfeito círculo concêntrico, um arco-íris! Na verdade, não sei se lhe posso chamar arco-íris, já que de arco não tinha nada!, era um círculo completo! Um anel! Sim, um anel glorioso, de esponsais entre a alegria e o mundo todo nesse momento! Não sei agora precisar se foi essa visão tão inusual que despoletou em mim, como se o meu coração fosse um brinquedo de corda, uma alegria trinando, ou se foi a alegria que já em mim despontava que provocou esse fenómeno nos céus... por mais irracional que se pareça, entre nós e o céu, já o sabemos pelas palavras de outro, passa-me mais do que a razão possa conhecer. Depois de vislumbrar esse largo e colorido anel, um anel de ternura maternal que por tudo poisava, de um amor filiar que tudo elevava, ainda e também de um afecto quase de amante, que a tudo transmutava, e tudo me parecia mais vivaz aos meus olhos: foquei apenas o que era alegria pura nas ruas, por mais tristemente urbanas que fossem, tudo o que lhe era ridentemente natural sobressaía, como a cor rubra e contrastiva de papoilas num campo verde: vi mães, e crianças, há sempre crianças e tudo o que elas fizessem era pela via do meigo, as maldades inerentes à criança desapareciam, e os animais surgiam todos mais vivos também... Ouvi três ou quatro cantos diversos das árvores, escondidos, apenas manchas rápidas de pardo e negro pela retina, exultando em canto o voo, nas ervas viviam-se batalhas e curtas epopeias, entre insectos e criaturas sem tino...

Tosse Convulsa. "É um olho nu, mas não selvagem."

É um olho nu, mas não selvagem. Vampiriza as cores,
o azul e o branco, todos os cinzas, das montanhas, das
noites, do quarto secreto, onde se alojam as palavras,
a última palavra e a palavra secreta. Transporta-se nos
outros como um vírus, e desenha um rasto em forma de
tela, ou de império vasto: engole a memória, as imagens
todas, sejam as fotografias de uma viagem num inverno
sejam as imagens negras de uma só criança. Está entre
os fantasmas dos inocentes, e o amor pelas coisas negras,
como em Lautréamont. Negro tão brilho, que espelha. Por
detrás, estende-se a citadela de altas colunatas avermelhadas,
de rito, e dos frisos multicolores de histórias vítreas e das
quais jamais partirá uma explicitação. Ficam-se figuras abertas
à toxicidade de qualquer interpretação. O olho passeia-se por
elas à lentidão que bem desejar ou antes com rapidez, corrosiva,
interrogante. Sorve cada característica, comercia com
todas, elevando aos poucos uma ordem linguística entre os
signos, que se repetem num padrão imenso, mas padrão na
mesma: características que ora caem num prato ora noutro, de
uma também imensa balança moral, mas cujo fiel demonstra ser
na rotação avesso a qualquer posição concludente, apenas se
importando com o movimente perene. Tudo isto nos contamina
como labaredas de liberdades que nos contagiam como cataratas
de ânsia e temor que nos envolvem como mantos... É um olho
cujos movimentos desarrumam os assobios possíveis e os ventos
guias e mensageiros. É um olho que não serve para ver somente,
mas para escrever o que vê, talvez segundo desejos, talvez segundo
um código preparado anteriormente à sua inauguração enquanto
órgão suserano. Rastreia a linha que se evola entre o mais profundo
dos poços cavados em busca de águas, turvas que fossem, ao mais
alto torreão falso de castelo, do qual se despenha gente, o qual
apenas serve para que se despenhe gente, nas turvas águas se
encontradas. Que custodia este olho nu senão vãs sombras,
com as quais atingimos, pela força desejante da mão, as mais
concretas ideias de sonambulismos com que comunicamospela superfície do mundo?

Strafkolonie. Ir embora.

O terror é conduzir por uma estrada com uma morte ao lado. Eu explico: é conduzir por uma estrada que serpeia por entre um bosque, contigo ao lado, no lugar do morto, mas sentir-me eu mais morto que tu, ainda que ambos estejamos encerrados no mesmo silêncio. O rádio do carro está a tocar, mas só serve para sublinhar duas vezes o silêncio. Seria bem melhor uma floresta à volta, mas não há verdadeiras florestas em Portugal. Muito narrativamente, a rádio despede e mente o verso Ein süßer, heiliger Akkord von dir/Den Himmel beßrer Zeiten mir erschlossen, tu abres a porta com o carro em andamento, desprendendo o cinto ao mesmo tempo, eu travo, o carro pára, tu saltas para fora, tu corres em direcção à floresta, eu saio do carro, tu desapareces por entre as árvores, eu grito um grito que diz espera/volta/não/merda/Isabel/vai/puta/amor, tu desapareces mesmo, eu já não grito nem sei se olhe a floresta ou as árvores.
Mas tudo isto é cinema, e não foi assim que te foste. O pensamento é nómada. Não é múltiplo, tão simplesmente, pois o que é múltiplo agrega-se em qualquer curral. Não muda de direcções apenas, como dos próprios fundamentos da sua direcção possível, e ainda assim desconfiando desses fundamentos. Mudaste. Mudas-te. A surpresa era esperada. Foi só empurrar os lençóis de manhã, receber um beijo e ouvir, “adeus vou-me embora”. Nunca soube se quando gritavas “ah!” enquanto fodíamos – porque fodíamos – seriam idênticos aos meus “ah”. Deitávamo-nos na relva a olhar o céu e contemplávamos em silêncio o azul desse céu. Mas mal descíamos às palavras, pela força da sua gravidade própria, fazíamos emergir a dúvida se os azuis entre nós eram o mesmo ou diferentes. E eu pensava, Ela não é humana. Apenas um humano poderá compreender o meu azul, e ela não o compreende, nem jamais compreenderá. E nessa manhã, em que talvez chovesse como num mau início de romance (independentemente se o romance em si o é), apercebi-me que há um fino fio e no fim dele há uma outra pessoa, ou pior, um deus. Como se eu pudesse conhecer alguma vez esse deus. Nem falar do Outro, então. As palavras não tornam nada mais claro. São como marcos colocados precisamente no centro do caminho: marcam o caminho, mas obrigam-nos a pequenos desvios, torções do corpo, atrasos que se acumulam. Demora a descobrir que os sentimentos podem ter o mesmo aparente nome, o mesmo sabor, mas diferente viscosidade, como o líquido que jorra gémeo da taça da Temperança. Escorre e esvai-se a diferentes velocidades sobre os nossos corpos, diferentes, difusos, em desunião inconstante. Esgotar-se-ia antes no teu.
Quereria ter mexido bem lá dentro, por dentro dos teus átomos, à escala femtométrica, com cócegas de luz a reescrever-te o toda tua. Se pudesse ter dedos à échelle courte, falaria das minhas unhas roçando em cada 10-15 de ti (posso dizer-te “um quindionésimo” à boca da orelha?). Até bater com os cornos na largura de Planck e, quem sabe, atravessar esse imenso mínimo muro. São tudo tormentas tranquilas. Andássemos para aí a sementar e tivesse eu o nariz virado para cima a ver o tempo e quanto mais tinha adiado?
Se pudesse ver um outro mundo pela ficção onde te resgatasse, mergulhava na planura dessas páginas. Imaginemos então uma civilização do tipo 7, na escala de Kardashev, em que a rosa do esquema de desenvolvimento parece completa. Haveria um todo completo mesmo? Um tudo possível? Ou mais limites ainda em que esbarrar e superar? Voltar-se-iam em experiências limitativas, estorvos impostos a si-mesmos, recontar os passos pelo tempo fora, como o Anjo que quer arrumar o lixo mas não consegue devido ao vento? Pelo menos distinguíramos as super-novas por novos sabores detectados pelas línguas e suas virtuais exo-dendrites. E concordaríamos em relação a azuis ou a músicas. Não interessa palrar protoficciocientificamente... Pois mesmo assim, levantaste-te e disseste, “vou-me embora”.
Como dizem os franceses, malheuresement, “em má-hora”, assim mesmo com um hífen que sabe a arpão. E as coisas têm de chocar e penetrar-se umas às outras para seguirmos caminho afinal. Os marcos colocados no centro são bem-vindos Se não existissem esses choques, esses desvios, o clinamen de Lucrécio, “choveria no abismo do espaço.”
O romance não continua, mas o seu mau início confirma-se, e continua a chover. Não faz mal. Molho-me. As horas cinzentas servem para isso mesmo e a música é uma arte podre.

Montesinos. As Mulheres de Dário. Uma mulher de nome talvez exótico.

Era o mesmo que uma flor exótica num jardim de banalidades, ou uma flor que nos é comum num jardim longínquo. Ou como uma pessoa de um outro país, entre nós, mais o seu nome impronunciável, banal no seu país. Quer dizer, não era raro, nem estranho, nem inusitado: simplesmente colocado num contexto contra o qual se destacava brilhante.

quinta-feira, julho 07, 2005

Strafkolonie. Jacintos.

Agora encontrava-se mais calmo. Apesar de não ter tido fome, comer ajuda sempre a uma espécie de moleza com que se sente confortável. Não se obriga a contrariar a ausência de desejo, é um movimento natural da inércia a que se devota diariamente.
Antes, no desespero de não ter conseguido arrastar tudo, suava, muito, limpando a testa com a ponta dos dedos e logo as costas das mãos, que ganhavam assim reflexos de gordura sebosa. E era também como se suasse por dentro e o pequeno dilúvio arrastasse qualquer pensamento possível. Concentrar-se em tão turbulentas águas?, irrealizável.
Soluçou sem som, como os choros de uma criança depois de chorar muito, já no final da resignação. Teria sido capaz de ter dado um grito, ou esmurrar a parede com os nós dos dedos. Não se feriria, claro. A raiva traz sempre uma capadura de protecção, desabituada. Não fosse o lembrar-se ter visto nalgum dia um carrinho de rodas, no qual Adriana costumava amarrar a mala enorme para viajar.
Funcionara, e tudo estava bem. Jacinto fazia dissipar com as últimas colheradas de iogurte os momentos em que sofrera com o medo. Ele sabe que os sonhos são estados em que as acções cumpridas se fazem com um zelo e um pormenor inigualáveis, tudo envolto por uma precisão e naturalidade que não existe na vigília. Há, porém, uma total ausência de fins compreensíveis. Jacinto pensava assim, e ponderava se não teria experienciado, não pela primeira vez, um estado misto de vigília e sonho.
Quando acordara essa manhã, tudo parecera igual. O som pouco distante do mar, as ondas subindo às costas umas das outras, e todas galgando as rochas. A bicicleta do Jorge passando ao largo. Um grulho ou dois de uma pardela ou um painho. Estão apenas de passagem nestes ermos, mal acabe o Verão não se ouvirão mais. Dera-lhe a espertina. A diferença marcante residia em detalhes quase invisíveis. Mas Jacinto estava treinado. Treinara durante anos. Em silêncio, em segredo, afastado de todos, um ideal muito pessoal, impartilhável. Por exemplo, ontem. Das portadas-janelas da sala via-se todo o céu por sobre o mar. Adriana e ele estiveram durante umas horas sentados no sofá. A ler, a beber mazagrin e a ouvir uns discos novos. Um momento típico de fim de Verão, inócuo, de artigo anódino de revista anódina. Sobre o mar, nuvens.
Um olhar treinado vê sempre mais além, entende textos onde outros vêem gatafunhos. Estratocúmulos pouco consistentes pairavam sobre o mar, e um avião passara, cortando-os e fazendo um ângulo agudo apontando a noroeste. Pouco depois, antes de esta esquina aparentemente adregada se dissipar, um bando de pardelas voava, naquele planar que lhes é costumeiro, interrompido por um agitar de asas brusco e curto. O bando compunha-se num voo triangular e encaixou nessa esquina. As barrigas brancas num corpo negro lembravam as ondas rebentando à noite nos rochedos ao largo da praia, bruscos brancos na noite. Entenda os sinais quem puder. “Os pássaros são a força inspiradora com que os homens desvendam discursos sábios e prevêem muitos êxitos antes de ocorrerem no seu esplendor.” Assim o diz Hildegarda de Bingen no seu Livro das Subtilezas.
Na sala, descrevia sempre os mesmos gestos, com pequenos maneirismos diversos, como se fosse obrigado por uma força magnética a ao sair fora de certos limites virtuais, de uma coreografia ritualista. A rotina ou a memória garantiriam uma maior segurança, confiança, quem saberá, da solidão que o oprimia. E esta manhã não tinha sido diferente. Não era aí que estava a diferença.
É dos mais fecundos momentos o da praia do retorno dos Sonhos. É já manhã, o corpo e a mente preparam-se para acordar e oferecem um pequeno entrementes que impeça a preocupação da aterragem. Uma história inevitavelmente a interromper, ma mesmo assim que possui mais que uma ou duas sementes aproveitáveis para o resto do dia, ou quem sabe, com sorte, durante mais tempo. Jacinto lera numa revista qualquer que os sonhos se processam apenas nos últimos segundos do sono, por isso nunca terminavam. Fazia sentido. Mas também sabia que depende da natureza do sonhador o que eles podem garantir.
Foi tudo rápido, exactamente com a velocidade que é peculiar dos sonhos. Como se fosse um hábito, escolhera o utensílio correcto, fascinara-se num breve segundo pelo reflexo limpo que fazia com a luz que entrava pela cozinha (lembrava-lhe um relâmpago de bom auspício, como se precisasse de tempestade para velejar), retornar ao quarto, debruçar-se sobre Adriana e segredar-lhe o que deveria ter segredado há muito. Ela não acordara. Como uma estátua respirando num sonho. Minha estátua de marfim, sou teu Pigmalião. Marfim, alabastro, lírio, nívea, alvura, bragal, ...ébano. Não, claro. Não é distracção de Jacinto. A comparação tinha sido tola. A pele de Adriana em nada se aparenta ao marfim. Tem a cor e a força dos troncos dos zambujeiros em frente à casa. Crestada de nascença, era uma mulher que ostentava sempre o que o sol tem de melhor. E ficava-lhe bem o último colar vermelho. Um quase imperceptível contraste...den ewigen Schlaf schlafen.
É notória a elasticidade do conceito de solidão. E se existem muitos medos humanos, nenhum é tão assustador como o é a solidão absoluta, além-humana. Independentemente da companhia, na curva da morte. Que conforto pensar que não estamos sozinhos. Como se uma montanha rodeada de fantasmas ganhasse uma maior vitalidade. Montanha à beira-mar e fantasmas de aves brancas que fazem o ninho em despenhadeiros.

Ela vestida de Eva e eu de Adão, estreámos a areia da praia mais próxima. Nem as patas de aves estavam marcadas na areia seca. E seriam as nossas pegadas também as últimas a serem apagadas mais tarde, já o sol mergulhado
Este canto do mundo quando as nuvens se engrossam como vacas grávidas de vermelhas tempestades escondidas, e quando troveja, troveja mesmo. São fortes e passageiras as chuvadas, e temos sempre medo de nos molharmos
Os contornos das nuvens brancas eram nítidos nas frondes, mas na parte inferior, na base, graduava-se num azul esbatido como o do próprio céu, fundindo as fronteiras numa inconsistência dúctil.
Foi preciso que o vento atravessasse uma lança pela cabeça de um efebo amaricado para dar nome a uma flor?

Na noite anterior, Adriana tinha-o recebido ternamente. Não fora a vez mais apaixonada em que se enlaçavam, decerto. Jacinto não acreditava que os fogos aguentassem o fervor durante muito tempo, mas acreditava que se pudessem manter acesos de alguma forma. Na noite anterior talvez não houvesse amor, mas ternura certamente. Adriana recebera-o, e ela aceitara ser recebido.
O abismo que Adriana fora há muito tornara-se seguro, demasiado seguro talvez. Enseada Amena. Nada mais. Os marinheiros sem medo. As sirenes roucas. Dedit abyssus vocem suam. Uma voz poderosa, feita de temporal amarrado às rochas, apenas vinha do outro lado da casa. Há duas semanas que não trovejava. A segurança era absoluta nestes ermos... da sala podem-se ver pedras amontoadas ao acaso que se queiram passar por muros. São apenas baixas barbacãs antepostas ao grande abismo... Segurança absoluta. Mas nunca das tormentas que rebentam por dentro.
O vento acabava de curvar, afastando-se do Estio. Os jacintos à porta de casa estremeceram. E Jacinto segue pelo passeio, sem se aperceber da última consonância.

sábado, junho 25, 2005

Tosse Convulsa. "Por razões crepusculares..."

Por razões crepusculares, a nossa total inépcia
de englobar o oceano inteiro no nosso corpo,
seja pelo olhar ou outro modo liminar,
consolida-se numa contínua pretensão, ou mais,
uma presunção, em inventar delírios capazes de
retransmitir essas mesmas percepções numa capaz,
transmissível e ecuménica língua. Entre uma coisa e
outra, a total ignorância sobre as tendências que
regulam a matéria, viesse o diabo e escolhesse...
como se os julgadores não fossem deste mundo
quem instituem as permutas de dessintonias várias,
numa investigação que chegará, algures (ou nenhures)
e nalgum (ou nenhum, tudo num “fora”) tempo,
a uma só Figura. Síntese simples e conclusiva,
facto de fronteira, quesito ou formulação
de direitos sobre o impedir da razão: nitidez
atomística que não devem ao rigor qualquer
conjunto prévio de benesses. Deixar-se estar
espraiado no fio do horizonte como se numa
borda da cama, vendo quem se ama a sair do
banho, cabelos a escorrer numa secante aos
círculos que o sol desenha por entre os vidros.

Trovoada. O Último Voo dos Pássaros.

O sol ainda não se pôs totalmente do outro lado do dia, e a nitidez dos contornos das coisas torna-se mais forte, nos poucos e preciosos momentos do encontro dos nossos olhos nocturnos com os diurnos. Caminhava pelo passeio, em direcção ao cais, do qual se atingia também a estação de comboios, onde se tivesse sorte apanharia o último comboio de volta a casa. Tinha que atravessar o pequeno jardim público, com variadas árvores protegidas por baixas cancelas pintadas de verde velho, e bancos de madeira que nunca foram confortáveis, mas menos nos dias em que conhecemos outros luxos. Por cima dos renques, nuvens que se concentravam e logo distendiam de pássaros volitavam. Resolveu parar e observar essa pequena mancha meio negra, meio diáfana que preenchia o céu imediato. O comboio poderia esperar. Tudo poderia esperar. Ele próprio esperou que os pássaros se cansassem de voar, e de chilrear alto como o faziam agora, e não paravam ao poisar nos seus ramos e ninhos, respectivos, desconfiando, acrescentou ele. Aos poucos, depois deste último voo, os pássaros foram-se calando, um hino de despedida ao sol, que já apenas iluminava de rosa armagedão os longes do horizonte. Um trino, uma frase pequena, fraca. Uma outra nota. E nada mais, apenas a noite. Todo o mundo terminara.

Montesinos. As Mulheres de Dário. Eduína. Os lábios.

Os lábios dela eram curvados para fora, quase em paralelo com o solo, sobretudo entre-lábios. Suava, e pequenas pérolas de suor ficavam presas no bigode louro e baloiçava nessa pequena ponte e plataforma. Dário beijou-a, sorvendo a água, que era salgada como lágrimas.

Montesinos. Vitrúvio. Geografia. Rio Anigro.

Nas margens do rio Anigro cresciam ervas amargas que provocavam os mais díspares efeitos, todos eles terríveis: vómitos, abortos, cegueira, e morte. Os poucos peixes que nele vogavam eram incomestíveis. A etimologia mesmo apontava essa condição insólita, apontando os seus cultores o vocábulo do vitruviano antigo an-egré, “veneno” como procedência.

Montesinos. Vitrúvio. Geografia. Via Stellis.

Da pequena colina a sul de Vitrúvio, que descia até ao rio e era das poucas áreas verdes deixadas intactas na cidade, erguia-se o que restava da antiga Via Stellis, cujos indícios eram apenas marcados pelos pedaços de arcos que pareciam brotar da terra como excrescências despropositadas mais do que o que restava de antigos e esplendorosos edifícios que tinham sido alguma vez planeados e construídos por homens. Eram ainda gloriosos, de uma forma estranha, um passado gasto e quase imperceptível, mas cujas capacidades da imaginação dos seus espectadores faziam varrer-se pela ideia de um caminho recto e assombroso, mesmo que consumido pelas eras. Alguns desses pedregulhos erguiam-se mesmo nos bancos do rio, lembrando a ponta que levaria ao palácio de Ustres, demolido pelo fogo de há três séculos e sucessivas guerras, brotando das águas como totens a deuses antigos, marinhos, inomináveis, nas fantasias dos mais lestos em termos do sagrado.