Corpo de texto: fragmentos.

segunda-feira, julho 11, 2005

Strafkolonie. Ir embora.

O terror é conduzir por uma estrada com uma morte ao lado. Eu explico: é conduzir por uma estrada que serpeia por entre um bosque, contigo ao lado, no lugar do morto, mas sentir-me eu mais morto que tu, ainda que ambos estejamos encerrados no mesmo silêncio. O rádio do carro está a tocar, mas só serve para sublinhar duas vezes o silêncio. Seria bem melhor uma floresta à volta, mas não há verdadeiras florestas em Portugal. Muito narrativamente, a rádio despede e mente o verso Ein süßer, heiliger Akkord von dir/Den Himmel beßrer Zeiten mir erschlossen, tu abres a porta com o carro em andamento, desprendendo o cinto ao mesmo tempo, eu travo, o carro pára, tu saltas para fora, tu corres em direcção à floresta, eu saio do carro, tu desapareces por entre as árvores, eu grito um grito que diz espera/volta/não/merda/Isabel/vai/puta/amor, tu desapareces mesmo, eu já não grito nem sei se olhe a floresta ou as árvores.
Mas tudo isto é cinema, e não foi assim que te foste. O pensamento é nómada. Não é múltiplo, tão simplesmente, pois o que é múltiplo agrega-se em qualquer curral. Não muda de direcções apenas, como dos próprios fundamentos da sua direcção possível, e ainda assim desconfiando desses fundamentos. Mudaste. Mudas-te. A surpresa era esperada. Foi só empurrar os lençóis de manhã, receber um beijo e ouvir, “adeus vou-me embora”. Nunca soube se quando gritavas “ah!” enquanto fodíamos – porque fodíamos – seriam idênticos aos meus “ah”. Deitávamo-nos na relva a olhar o céu e contemplávamos em silêncio o azul desse céu. Mas mal descíamos às palavras, pela força da sua gravidade própria, fazíamos emergir a dúvida se os azuis entre nós eram o mesmo ou diferentes. E eu pensava, Ela não é humana. Apenas um humano poderá compreender o meu azul, e ela não o compreende, nem jamais compreenderá. E nessa manhã, em que talvez chovesse como num mau início de romance (independentemente se o romance em si o é), apercebi-me que há um fino fio e no fim dele há uma outra pessoa, ou pior, um deus. Como se eu pudesse conhecer alguma vez esse deus. Nem falar do Outro, então. As palavras não tornam nada mais claro. São como marcos colocados precisamente no centro do caminho: marcam o caminho, mas obrigam-nos a pequenos desvios, torções do corpo, atrasos que se acumulam. Demora a descobrir que os sentimentos podem ter o mesmo aparente nome, o mesmo sabor, mas diferente viscosidade, como o líquido que jorra gémeo da taça da Temperança. Escorre e esvai-se a diferentes velocidades sobre os nossos corpos, diferentes, difusos, em desunião inconstante. Esgotar-se-ia antes no teu.
Quereria ter mexido bem lá dentro, por dentro dos teus átomos, à escala femtométrica, com cócegas de luz a reescrever-te o toda tua. Se pudesse ter dedos à échelle courte, falaria das minhas unhas roçando em cada 10-15 de ti (posso dizer-te “um quindionésimo” à boca da orelha?). Até bater com os cornos na largura de Planck e, quem sabe, atravessar esse imenso mínimo muro. São tudo tormentas tranquilas. Andássemos para aí a sementar e tivesse eu o nariz virado para cima a ver o tempo e quanto mais tinha adiado?
Se pudesse ver um outro mundo pela ficção onde te resgatasse, mergulhava na planura dessas páginas. Imaginemos então uma civilização do tipo 7, na escala de Kardashev, em que a rosa do esquema de desenvolvimento parece completa. Haveria um todo completo mesmo? Um tudo possível? Ou mais limites ainda em que esbarrar e superar? Voltar-se-iam em experiências limitativas, estorvos impostos a si-mesmos, recontar os passos pelo tempo fora, como o Anjo que quer arrumar o lixo mas não consegue devido ao vento? Pelo menos distinguíramos as super-novas por novos sabores detectados pelas línguas e suas virtuais exo-dendrites. E concordaríamos em relação a azuis ou a músicas. Não interessa palrar protoficciocientificamente... Pois mesmo assim, levantaste-te e disseste, “vou-me embora”.
Como dizem os franceses, malheuresement, “em má-hora”, assim mesmo com um hífen que sabe a arpão. E as coisas têm de chocar e penetrar-se umas às outras para seguirmos caminho afinal. Os marcos colocados no centro são bem-vindos Se não existissem esses choques, esses desvios, o clinamen de Lucrécio, “choveria no abismo do espaço.”
O romance não continua, mas o seu mau início confirma-se, e continua a chover. Não faz mal. Molho-me. As horas cinzentas servem para isso mesmo e a música é uma arte podre.