Corpo de texto: fragmentos.

terça-feira, março 14, 2006

Montesinos. Dário. Carta a Eduína.

Seria bom, de vez em quando - mas apenas ocasionalmente, porque a salvação a mais torna-se uma dependência tristonha e enfraquecedora como outra qualquer - podermos mergulhar num rio bem fundo, e encontrar uma cidade nesse fundo. E habitaríamos essa cidade como bem nos aprouvesse, com papéis escritos só para nós, a pensar em nós, tão perfeitos e tão bem delineados com a nossa verdadeira natureza que nem nós próprios os saberíamos engendrar... Muitas vezes dizemos em segredos e surdinas o que desejaríamos ser ou ter ou ver ou ler ou rir, mas sempre nos enganamos. E a nós próprios em primeiro lugar.
Ou então, e no seguimento de uma grande tradição que vai até banquetes de filósofos mal divertidos, se quisermos acreditar nas histórias das metades que faltam, encontrar a tal outra pessoa que nos completaria num único, uno e individo ser superior. Mas essa busca é incessante e sempre errónea e é isso o que dá gosto e interesse ao labirinto e à corrida que se passa lá no interior, não é?
Ou então, seguir linhas de sonhos mais básicos, como acordar de toda a ilusão, descobrir termos sido adoptados e os nossos verdadeiros pais resgatarem-nos da banalidade, ou sermos raptados por alienígenas benfeitores e iluminadores, ou encontrarmos Deus - ou um seu sósia - num desconhecido por acaso no autocarro, ou levarmos a cabo aquela aventurazinha meio badalhoca que detestamos quando acordados e sociais mas que suspiramos por ela nos recessos mais escuros dos cantos dos becos das grutas mais fundas do nosso ser...
Ou simplesmente abrir a janela, olha para o reflexo da rua que conhecemos invertido e que se parece com nada do que conhecemos e é a saída única, e sentirmos o canto ensurdecedor e contínuo da cigarras, e a brisa na testa e saltar para aí, pairando, flutuando até atingirmos o limiar das portas giratórias que se nos oferecem a cada passo e a cada escolha da semana.
Quantos exércitos de nós próprios precisamos para nos vencermos a nós, e erguermo-nos com novos poderes e entendimentos. Não sei como, mas acordarei mais tarde ou mais cedo, ou assim planifico até adormecer de vez. E largar este meio-sono, em que oiço os sons lá fora mas não participo deles.
Quero tornar-me na Aranha Mestra dele: prendendo, vítimas, as estórias dele para um banquete carnificinioso, cuspi-las de volta a um estômago mais forte, e cobrir tudo de tessituras coerentes que façam parecer tudo como parte de um Todo maior, que sempre lá esteve mas não víramos antes. Talvez seja essa a janela de outrem que posso escancarar e dar o passo que preciso.
E fiquem-se mais uma vez bandos de beijos com sabores de frutas e gelo por sobre as tuas mãos.
Liberta-te, acende o chocolate, esquece o sítio onde estacionaste o carro, e vai a pé até nde querias chegar e chegarás.
P.S.
Sabias que os pombos-correio não vão a lado nenhum? Antes voltam aos donos e aos pombais a que pertencem, depois de terem sido levados pelos correspondentes?