Corpo de texto: fragmentos.

terça-feira, março 14, 2006

Montesinos. Dário. Ida ao "Terraço".

Dário sentava-se no sofá da pequena sala. Já se tinham passado algumas semanas, talvez meses. Era difícil medir o tempo em ócios. Tinha comprado um CD da colecção “Músicas de Trabalho”. O sétimo volume, que abrira há minutos, compilava canções de pescadores do alto mar, da costa Oeste. Algumas das gravações foram feitas com uma tecnologia pobre, tentativa, obsoleta. Mas num local e em condições impossíveis de reiterar. A dado momento, foi assaltado por dois versos, transcritos também no livrito que acompanhavam a edição

Vieras para ficar
Como nós
Nestas águas pescaste
Com tua voz


Havia uma mensagem ali. O código não era claro. O telefone tocou.
_ Dário?
_ Mm.
_ ‘Tá?, é o Gustavo.
_ Eu sei.
_ Casmurro, como sempre. Anda, it’s yer lucky day, me mate. Estamos no Terraço e vamo-nos esquecer das mulheres.
Absorto em nada, Dário concordou e desligou. Acabou com uma sanduíche de paio que tinha deixado a meio pela tarde, e um último resquício de sumo de uva numa garrafa de vidro – uma das sodas BB, já não no mercado, com aquelas rolhas que se soltam com um trapézio de metal e que resgatara da casa de Heloísa – e procurou as chaves de casa. Estavam num casaco negro comprido que lhe chegavam aos joelhos, que resolveu levar, depois de ter visto a morrinha pela janela.
Uma neblina húmida que se cola à pele e à roupa indiferente à superfície distinta das coisas deixou-o todo molhado naquela não tão pequena viagem entre o apartamento e o Terraço. Cabelos, as mãos, a face, tudo ensopado. Mas se alguém perguntar «está a chover?», não sabemos o que responder. Talvez, com falsa segurança, «não, não está». Para que serviria este encontro? Na subida, antes de chegar à Calçado do Combro, a resposta à pergunta mental que tinha feito seria «sim, chove». Poças começavam a formar-se nas mossas do alcatrão e escorriam lentamente pelo lado dos passeios. Serviria isto tudo para algo destrutivo, e o problema estava em se decidir o que seria destruído. O tempo piorava. Aliás, piora cada vez mais, parece que o clima já não obedece a uma certa contagem de tempo. Em português, as palavras coincidem, mas o tempo não é coincidente de forma alguma. Tinha de descobrir o que era essa coisa ou vítima o mais depressa possível, pois após a destruição próxima, nada a resgataria à natureza completa anterior. Velhos contos confirmariam estes divórcios entre meses e chuvas destrinçando verdades romanceadas e belos poemas que esclareciam o funcionamento ou até o desconcerto do mundo. Hoje, Cronos e outros deuses abandonaram os países e habitam as caves mais escuras no fundo das nossas cabeças. Ou então lojas de brinquedos baratos de plástico que com dois ou três movimentos incapazes de serem elaborados por um adulto se transformam noutra coisa, um dinossáurio talvez, ou um robot que se parece com um lagarto Jurássico. Não identificava nada, e sabia que tudo se perderia.
Chegou finalmente ao Terraço. Um homem com a pele em profusão de rugas quase imperceptíveis nas mãos e na cara, que lhe dava um aspecto de se cobrir de pergaminho, sentava-se numa das mesas mais afastadas da porta. Era bem mais velho que Dário, mas conheciam-se bem. Em momentos mais bebidos, talvez até se tratassem por “amigos”. Sentava-se ao lado de outro homem, ruivo, que jamais tinha visto por ali.
- Então, Sebastião? Tudo bem?