Corpo de texto: fragmentos.

terça-feira, março 14, 2006

Trovoada. Um homem que avança sobre o fogo.

Já lavrava o fogo fazia três dias quando o homem por aqui chegou. Não obstante as várias corporações de bombeiros investidas nos vários pontos do incêndio, nada parecia fazer vergar a sua força e insistência. O homem veio a pé, subindo pela encosta com um longo casaco, quase um sobretudo ao longe, que parecia quente demais não só para o clima como para a situação presente. Dois dos aldeões desceram, aproximando-se dele, esbracejando em demasia e perguntando alguma coisa, ou admoestando-o ou dando um simples e redundante aviso, inaudível onde nos encontramos. O homem respondeu, num som mais alto do que se esperava de alguém que assim viera subindo o monte sob aquele calor.
- Não, não sou casado.
Os rostos dos aldeões pareciam multiplicar a estupefacção ao se virarem um ao outro, e foi hesitação o suficiente para o homem atravessar por entre ambos, continuando a subida, em direcção à primeira frente de fogo.

Strafkolonie. A flor nupcial.

Numa terra muito distante daqui há um himeneu absoluto permitido por uma espécie extraordinária de flor. Esta é uma casta rara de união, exclusiva, definitiva, quando o amor é inabalável para todo o sempre e até ao fim.
Na cerimónia, cada um dos noivos ingere uma das duas flores desta espécie, que nascem gémeas de um só estame. As propriedades desta planta levam a que sobreviva no interior dos corpos dos esposos e que se mantenham ligadas por qualquer subtil e invisível perfume... Na morte de um deles, a flor que vive no outro liberta um veneno grácil e, assim, a morte une para sempre os amantes...

Montesinos. Dário. Carta a Eduína.

Seria bom, de vez em quando - mas apenas ocasionalmente, porque a salvação a mais torna-se uma dependência tristonha e enfraquecedora como outra qualquer - podermos mergulhar num rio bem fundo, e encontrar uma cidade nesse fundo. E habitaríamos essa cidade como bem nos aprouvesse, com papéis escritos só para nós, a pensar em nós, tão perfeitos e tão bem delineados com a nossa verdadeira natureza que nem nós próprios os saberíamos engendrar... Muitas vezes dizemos em segredos e surdinas o que desejaríamos ser ou ter ou ver ou ler ou rir, mas sempre nos enganamos. E a nós próprios em primeiro lugar.
Ou então, e no seguimento de uma grande tradição que vai até banquetes de filósofos mal divertidos, se quisermos acreditar nas histórias das metades que faltam, encontrar a tal outra pessoa que nos completaria num único, uno e individo ser superior. Mas essa busca é incessante e sempre errónea e é isso o que dá gosto e interesse ao labirinto e à corrida que se passa lá no interior, não é?
Ou então, seguir linhas de sonhos mais básicos, como acordar de toda a ilusão, descobrir termos sido adoptados e os nossos verdadeiros pais resgatarem-nos da banalidade, ou sermos raptados por alienígenas benfeitores e iluminadores, ou encontrarmos Deus - ou um seu sósia - num desconhecido por acaso no autocarro, ou levarmos a cabo aquela aventurazinha meio badalhoca que detestamos quando acordados e sociais mas que suspiramos por ela nos recessos mais escuros dos cantos dos becos das grutas mais fundas do nosso ser...
Ou simplesmente abrir a janela, olha para o reflexo da rua que conhecemos invertido e que se parece com nada do que conhecemos e é a saída única, e sentirmos o canto ensurdecedor e contínuo da cigarras, e a brisa na testa e saltar para aí, pairando, flutuando até atingirmos o limiar das portas giratórias que se nos oferecem a cada passo e a cada escolha da semana.
Quantos exércitos de nós próprios precisamos para nos vencermos a nós, e erguermo-nos com novos poderes e entendimentos. Não sei como, mas acordarei mais tarde ou mais cedo, ou assim planifico até adormecer de vez. E largar este meio-sono, em que oiço os sons lá fora mas não participo deles.
Quero tornar-me na Aranha Mestra dele: prendendo, vítimas, as estórias dele para um banquete carnificinioso, cuspi-las de volta a um estômago mais forte, e cobrir tudo de tessituras coerentes que façam parecer tudo como parte de um Todo maior, que sempre lá esteve mas não víramos antes. Talvez seja essa a janela de outrem que posso escancarar e dar o passo que preciso.
E fiquem-se mais uma vez bandos de beijos com sabores de frutas e gelo por sobre as tuas mãos.
Liberta-te, acende o chocolate, esquece o sítio onde estacionaste o carro, e vai a pé até nde querias chegar e chegarás.
P.S.
Sabias que os pombos-correio não vão a lado nenhum? Antes voltam aos donos e aos pombais a que pertencem, depois de terem sido levados pelos correspondentes?

Montesinos. Dário. Ida ao "Terraço".

Dário sentava-se no sofá da pequena sala. Já se tinham passado algumas semanas, talvez meses. Era difícil medir o tempo em ócios. Tinha comprado um CD da colecção “Músicas de Trabalho”. O sétimo volume, que abrira há minutos, compilava canções de pescadores do alto mar, da costa Oeste. Algumas das gravações foram feitas com uma tecnologia pobre, tentativa, obsoleta. Mas num local e em condições impossíveis de reiterar. A dado momento, foi assaltado por dois versos, transcritos também no livrito que acompanhavam a edição

Vieras para ficar
Como nós
Nestas águas pescaste
Com tua voz


Havia uma mensagem ali. O código não era claro. O telefone tocou.
_ Dário?
_ Mm.
_ ‘Tá?, é o Gustavo.
_ Eu sei.
_ Casmurro, como sempre. Anda, it’s yer lucky day, me mate. Estamos no Terraço e vamo-nos esquecer das mulheres.
Absorto em nada, Dário concordou e desligou. Acabou com uma sanduíche de paio que tinha deixado a meio pela tarde, e um último resquício de sumo de uva numa garrafa de vidro – uma das sodas BB, já não no mercado, com aquelas rolhas que se soltam com um trapézio de metal e que resgatara da casa de Heloísa – e procurou as chaves de casa. Estavam num casaco negro comprido que lhe chegavam aos joelhos, que resolveu levar, depois de ter visto a morrinha pela janela.
Uma neblina húmida que se cola à pele e à roupa indiferente à superfície distinta das coisas deixou-o todo molhado naquela não tão pequena viagem entre o apartamento e o Terraço. Cabelos, as mãos, a face, tudo ensopado. Mas se alguém perguntar «está a chover?», não sabemos o que responder. Talvez, com falsa segurança, «não, não está». Para que serviria este encontro? Na subida, antes de chegar à Calçado do Combro, a resposta à pergunta mental que tinha feito seria «sim, chove». Poças começavam a formar-se nas mossas do alcatrão e escorriam lentamente pelo lado dos passeios. Serviria isto tudo para algo destrutivo, e o problema estava em se decidir o que seria destruído. O tempo piorava. Aliás, piora cada vez mais, parece que o clima já não obedece a uma certa contagem de tempo. Em português, as palavras coincidem, mas o tempo não é coincidente de forma alguma. Tinha de descobrir o que era essa coisa ou vítima o mais depressa possível, pois após a destruição próxima, nada a resgataria à natureza completa anterior. Velhos contos confirmariam estes divórcios entre meses e chuvas destrinçando verdades romanceadas e belos poemas que esclareciam o funcionamento ou até o desconcerto do mundo. Hoje, Cronos e outros deuses abandonaram os países e habitam as caves mais escuras no fundo das nossas cabeças. Ou então lojas de brinquedos baratos de plástico que com dois ou três movimentos incapazes de serem elaborados por um adulto se transformam noutra coisa, um dinossáurio talvez, ou um robot que se parece com um lagarto Jurássico. Não identificava nada, e sabia que tudo se perderia.
Chegou finalmente ao Terraço. Um homem com a pele em profusão de rugas quase imperceptíveis nas mãos e na cara, que lhe dava um aspecto de se cobrir de pergaminho, sentava-se numa das mesas mais afastadas da porta. Era bem mais velho que Dário, mas conheciam-se bem. Em momentos mais bebidos, talvez até se tratassem por “amigos”. Sentava-se ao lado de outro homem, ruivo, que jamais tinha visto por ali.
- Então, Sebastião? Tudo bem?

Tosse Convulsa. Divagações no vento norte.

De Lisboa fugimos para uma praia já
na volta da curva, protegida pelo vazia
que se encontra no Inverno. Uma pequena
fuga em forma de verão só nosso, num
amor que não chega a amor e vai além dele,
um amor todo segredo e mentira, mas justo.
Na condução, trocam-se palavras, e conceitos
desusados, preenchendo os medos de
nos termos que conhecer de novo cada
vez que nos encontramos de novo. Trocamos
ideias e retalhos de frases espirituosas,
voando de cérebro em cérebro como a gripe
que parece ir subindo uma rua e chamando
às portas das casas como antes faziam (hoje
menos) pedindo pão por Deus. Deitados na praia,
fazemos por construir postais de fotografias de
gosto dúbio, canções de música popular portuguesa
e romântica, vulgo, foleiras. Oblações com areia na
roupa, meios-sonos que não se instalam, e o
proverbial silêncio que se ergue com o ruído único
do mar, filtrando onda a onda os evos que se
encavalitam, acumulam, se apagam em sucessão.
Falamos mais um pouco então, com os dedos, as
línguas, as pestanas em borboleta, os pés, calçados,
em paralelo, os corpos todos, mudos e quedos.
Retiramo-nos, pelo trilho deixado por máquinas
e marés, pelas sombras largadas e lentas das cascas
de animais marinhos. Até ao café, onde está o cão.
E o cão segue-nos, não só dócil como também
servil, e é isso que me faz não gostar de cães,
implorando amor de barriga para cima, solícitos
com o seu longo e intratado pêlo enroscado e
cheio de pedaços de coisas já vivas. Não gosto
dessa solicitude porque ecoa a minha, que acabei
de retornar de um canto de praia, onde me
enroscara a ti, de barriga para cima, de olhos
fechados escutando o nada, o sol, a tua mão
passeando-se no meu rosto, barba, lábios, desmanchando
areia e sal na pele. Implorei sem palavras, como o
cão, e agora voltamos outra vez ao estranho
jogo, de regras livres, em preencher um vazio
imenso que queremos que continue,

sobretudo,

vazio.

Tosse Convulsa. Três poemas pelas terras do Amor. 3: Tudo o que quero.

Uma luz que afastava as sombras que insistem em fazer-se escorregar pelas superfícies que são tudo o que me resta de anteriores saldos negativos de amores.

Não te quero pedir nada, nada.
A não ser que fiques comigo para sempre.
Não quero que me dês nada, nada.
A não ser que te esvazies toda só para te engolir.
Não te prometo nada, nada.
A não ser ceder o espaço que existo para que tu o ocupes.
Não quero que esperes de mim nada, nada.
A não ser que eu esteja sempre à tua espera e tu de mim.
Não quero que me toques sequer.
Quero que me respires e bebas e te engasgues comigo.
Não quero que te dês.
Quero que já tenhas sido dada e eu te roube toda.

Não sei porque não consigo escrever certas palavras.
Talvez seja porque já sejam ditas mas não conheças o idioma ou eu o não saiba traduzir.

Ricardo Reis, um outro que preferia dizer pouco, disse:

«Quer pouco: terás tudo.
Quer nada: serás livre.
O mesmo amor que tenham
Por nós, quer-nos, oprime-nos.»

Nós não queremos amor, porque temos ainda medo dele, de outro amor, de outros amores.
Nós queremos amor, mas um amor simples, que não se esvai tão rápido, porque se imiscui por nós lenta e profundamente.


Só quero que seja rápida a lentidão com que desejas.

Tosse Convulsa. Três poemas pelas terras do Amor. 2: Heráldica do Amor.

A tua pele cálida, campo de marta-zibelina, sob um luzeiro inerte
torna-se invertida, contra-arminho,
dividindo-se em reluzentes quartéis, atravessada pela
cruz de santo André, aspas em goles refulgentes na negridão e amplitude
do meu abraço esmaltado a sable, onde das três vezes que te visito
três besantes vinculo.
De na alfombra chã pascente a passante,
a visão da tua coroa negra timbrada de cheiros musgosos,
paquife espraiado por toda a infinitude dos meus gestos: fazes-te-me.
E vibram-se-me as cordas,
agora a vieira abre-se, agora as bagas da moura estalam, agora a cruz a evaporar-se gamada
por poros, bocas ávidas e cerradas a um só tempo,
de grifo, inscrito nenhures.
Latejam-me as têmporas,
as garras afiancam-se nos penhascos do teu ombro,
rampante,
montante,
saltante,
trepante.
Cabreio,
pões-me lampassado e arfante.
Aguieta voante de olhos-adaga, a tua cabeça coronela aproxima-se, bicada:
lábios blaus de Melusina mortífera num corpo pingado em sinopla
(pântano ou fogueira?).
Amparo o golpe com os braços, sopeso o manteler nas minhas mãos,
de arruelas rosas e rompentes.
Agora irado, quinante, caçante – apanhar-te-ei, apanhar-me-ás?
“Dia da Graça, o da caça e do caçador”.
Já não nada entendo, onde estamos e a quem esta perna pertence, decepada e liada a dois
/corpos?
Os dois olhos, um áureo e outro argênteo,
deitados nos veiros, glandes alaranjadas e púrpuras, lacrimosos e
blasoneando as vitórias, e dessalando quatro montinhos brancos em quartéis:
nova cruz, de Malta, animada, desabrochando em trifólios vivos,
eis que os frutos húmidos pendem alimentícios e brandos,
carapeto nas minhas blandícias, fugente das minhas travessuras.
ajunto à panóplia a que me obrigo novos escudo, tarja
e elmo de longo coçar despenteando de oliveira,
mas quedar-me-á
partido, cortado, fendido, talhado, esquartelado ou franchado, pelo teu curto
e morboso alfanje?

Tosse Convulsa. Três poemas pelas terras do Amor. 1: Amor, como verbo demasiado transitivo.

Três fermosos outeiros se mostravam na deleitosa ilha
Luís de Camões


Amor parentético
Amor lacustre
Amor hercúleo, ecúleo
Amor abemolado
Amor atro
Amor extremo deplumado

Amor ectásico
Amor cerneiro
edace, fleumático e acamado
Amor lapídeo
Amor sonial
Amor às terças e roaz

Assexo amor
Amor alhete
Amor eufráctico e estival
Amor pécten
Samba nilígeno
Litencantropia de amora

Meu pantógrafo
Pantafaçudo
j’ansas de mel de gerebera
Amor hosco, fescenino
rol de estevas onde durmo.