Corpo de texto: fragmentos.

segunda-feira, julho 11, 2005

Trovoada. Luz para corredores em construção.

O tempo. Compare-se com areia por entre os dedos, água de um rio passando, nuvens desfiando-se, o tempo não deixa de ter as suas próprias linhas de carril, nas quais mais nenhuma carruagem é compatível. Todos temos o nosso pequeno lugar reservado, e não nos podemos apear antes nem depois da paragem para a qual comprámos o bilhete. Ninguém nos prometera que seria uma viagem cómoda. E o homem com as sandes já demora muito a retornar....

Montesinos. Fora de Vitrúvio. Reguengos de Vidoeiro.

Este endereço seria para os lados de Reguengos de Vidoeiro. Ora o próprio nome da vila conservava em si as pistas para entender o que teria ela a oferecer ao visitante esporádico: um pequeno palacete que segundo as bocas do local era onde o rei costumava passar uns dias aquando da sua passagem, o que se duvida, seria mais de qualquer dos seus administradores marqueses, ou se calhar apenas condes; e os vários renques de bétulas que se espalhavam pelos muitos outeiros ali à volta, tão antigos que já nem se dava pela falta de naturalidade da coisa. Era precisamente à saída do povoedo que se encontravam os velhos e abandonados celeiros. Desde há anos para cá que o progresso passava ao longe, para lá das coutadas dos grandes senhores que grandes continuaram, enquanto os pequenos, uns definhavam, outros minguavam, para lá do que se veria daqui do rossio, lá onde se escutava o ramerrão dos carros passando pela estrada grande. Chamei-lhe rossio por respeito para com as gentes destes duvidosos reguengos, já que se tratava tão simplesmente de um côncavo no macadame preto e branco, ao acaso reparado, em frente de um comprido edifício que albergava, a uma só vez, o café, o talho, e a junta de freguesia, e de onde partiam a estrada alcatroada que nos levaria de volta ao mundo que se pauta pelo calendário actual, e mais dois ou três trainéis para sabem lá as suas almas. A carestia era grande, garantia a gentiaga, e ala moço era já santo e senha há décadas.
Era por um dos lanços da estrada, um caminho que apenas o era pelos séculos de pés de homem e besta, carros de bois, motorizadas e o ocasional automóvel, que se alcançava o celeiro que buscava: todos na taberna me indicavam saber onde eram, a falta de desconfiança deles só se explicará pela desistência com que pareciam mover-se no balcão.
O orgulho deste povo era o grande tamariz que se erguia sozinho por entre duas lapas, nos confins do terreno do “palácio”: resquícios de um tempo em que os nobres os plantavam de forma a marcar o macho nascido no seio da família.
Assobiou uma volatina para acompanhar os passos e desapareceu por entre as árvores....

Tosse Convulsa. "Dizes que sim como o burro"

Dizes que sim como o burro, que grita “iá, iá”
e não pensa e não deita fora o fardo que leva
às costas. Os segredos são perigosos e nocivos
à saúde: são carcomas que infectam por dentro
quem os tem. Encolhes os ombros, assinas o
despacho pensado que se, se, se, se e todos esses
ses acumulam-se como um tambor de vidro de
serpentes, ondeando umas por cima das outras
destilando veneno que de nada serve a ninguém,
apenas a ti-mesmo, acumulando-se no fundo,
fazendo subir o nível de veneno até aos artelhos,
ou mais, até te afogar em veneno, e ao respirar para
não te afogares, arfas, inspiras, esbracejas como um
louco, consumes mais ar que o que te cabe na conta, e
continuas a zurrar, a zurrar sim e sim e outro sim,
e é com esse falso sim na boca, que de nada te serve,
que serves aos outros, que morres, sob o fardo.

Montesinos. Vitrúvio. Clima. O circo-íris.

Nesse momento, olhei para o alto. O sol estava mesmo por cima de mim, um sol poderoso de meio-dia, como um reflexo de glória no fim do trajecto do meu olho pineal. Tive que cerrar as pálpebras à volta dos olhos, com a ajuda de toda uma ondulação da face que mos protegesse da luz directa. E então pude vê-lo: à volta do sol, num perfeito círculo concêntrico, um arco-íris! Na verdade, não sei se lhe posso chamar arco-íris, já que de arco não tinha nada!, era um círculo completo! Um anel! Sim, um anel glorioso, de esponsais entre a alegria e o mundo todo nesse momento! Não sei agora precisar se foi essa visão tão inusual que despoletou em mim, como se o meu coração fosse um brinquedo de corda, uma alegria trinando, ou se foi a alegria que já em mim despontava que provocou esse fenómeno nos céus... por mais irracional que se pareça, entre nós e o céu, já o sabemos pelas palavras de outro, passa-me mais do que a razão possa conhecer. Depois de vislumbrar esse largo e colorido anel, um anel de ternura maternal que por tudo poisava, de um amor filiar que tudo elevava, ainda e também de um afecto quase de amante, que a tudo transmutava, e tudo me parecia mais vivaz aos meus olhos: foquei apenas o que era alegria pura nas ruas, por mais tristemente urbanas que fossem, tudo o que lhe era ridentemente natural sobressaía, como a cor rubra e contrastiva de papoilas num campo verde: vi mães, e crianças, há sempre crianças e tudo o que elas fizessem era pela via do meigo, as maldades inerentes à criança desapareciam, e os animais surgiam todos mais vivos também... Ouvi três ou quatro cantos diversos das árvores, escondidos, apenas manchas rápidas de pardo e negro pela retina, exultando em canto o voo, nas ervas viviam-se batalhas e curtas epopeias, entre insectos e criaturas sem tino...

Tosse Convulsa. "É um olho nu, mas não selvagem."

É um olho nu, mas não selvagem. Vampiriza as cores,
o azul e o branco, todos os cinzas, das montanhas, das
noites, do quarto secreto, onde se alojam as palavras,
a última palavra e a palavra secreta. Transporta-se nos
outros como um vírus, e desenha um rasto em forma de
tela, ou de império vasto: engole a memória, as imagens
todas, sejam as fotografias de uma viagem num inverno
sejam as imagens negras de uma só criança. Está entre
os fantasmas dos inocentes, e o amor pelas coisas negras,
como em Lautréamont. Negro tão brilho, que espelha. Por
detrás, estende-se a citadela de altas colunatas avermelhadas,
de rito, e dos frisos multicolores de histórias vítreas e das
quais jamais partirá uma explicitação. Ficam-se figuras abertas
à toxicidade de qualquer interpretação. O olho passeia-se por
elas à lentidão que bem desejar ou antes com rapidez, corrosiva,
interrogante. Sorve cada característica, comercia com
todas, elevando aos poucos uma ordem linguística entre os
signos, que se repetem num padrão imenso, mas padrão na
mesma: características que ora caem num prato ora noutro, de
uma também imensa balança moral, mas cujo fiel demonstra ser
na rotação avesso a qualquer posição concludente, apenas se
importando com o movimente perene. Tudo isto nos contamina
como labaredas de liberdades que nos contagiam como cataratas
de ânsia e temor que nos envolvem como mantos... É um olho
cujos movimentos desarrumam os assobios possíveis e os ventos
guias e mensageiros. É um olho que não serve para ver somente,
mas para escrever o que vê, talvez segundo desejos, talvez segundo
um código preparado anteriormente à sua inauguração enquanto
órgão suserano. Rastreia a linha que se evola entre o mais profundo
dos poços cavados em busca de águas, turvas que fossem, ao mais
alto torreão falso de castelo, do qual se despenha gente, o qual
apenas serve para que se despenhe gente, nas turvas águas se
encontradas. Que custodia este olho nu senão vãs sombras,
com as quais atingimos, pela força desejante da mão, as mais
concretas ideias de sonambulismos com que comunicamospela superfície do mundo?

Strafkolonie. Ir embora.

O terror é conduzir por uma estrada com uma morte ao lado. Eu explico: é conduzir por uma estrada que serpeia por entre um bosque, contigo ao lado, no lugar do morto, mas sentir-me eu mais morto que tu, ainda que ambos estejamos encerrados no mesmo silêncio. O rádio do carro está a tocar, mas só serve para sublinhar duas vezes o silêncio. Seria bem melhor uma floresta à volta, mas não há verdadeiras florestas em Portugal. Muito narrativamente, a rádio despede e mente o verso Ein süßer, heiliger Akkord von dir/Den Himmel beßrer Zeiten mir erschlossen, tu abres a porta com o carro em andamento, desprendendo o cinto ao mesmo tempo, eu travo, o carro pára, tu saltas para fora, tu corres em direcção à floresta, eu saio do carro, tu desapareces por entre as árvores, eu grito um grito que diz espera/volta/não/merda/Isabel/vai/puta/amor, tu desapareces mesmo, eu já não grito nem sei se olhe a floresta ou as árvores.
Mas tudo isto é cinema, e não foi assim que te foste. O pensamento é nómada. Não é múltiplo, tão simplesmente, pois o que é múltiplo agrega-se em qualquer curral. Não muda de direcções apenas, como dos próprios fundamentos da sua direcção possível, e ainda assim desconfiando desses fundamentos. Mudaste. Mudas-te. A surpresa era esperada. Foi só empurrar os lençóis de manhã, receber um beijo e ouvir, “adeus vou-me embora”. Nunca soube se quando gritavas “ah!” enquanto fodíamos – porque fodíamos – seriam idênticos aos meus “ah”. Deitávamo-nos na relva a olhar o céu e contemplávamos em silêncio o azul desse céu. Mas mal descíamos às palavras, pela força da sua gravidade própria, fazíamos emergir a dúvida se os azuis entre nós eram o mesmo ou diferentes. E eu pensava, Ela não é humana. Apenas um humano poderá compreender o meu azul, e ela não o compreende, nem jamais compreenderá. E nessa manhã, em que talvez chovesse como num mau início de romance (independentemente se o romance em si o é), apercebi-me que há um fino fio e no fim dele há uma outra pessoa, ou pior, um deus. Como se eu pudesse conhecer alguma vez esse deus. Nem falar do Outro, então. As palavras não tornam nada mais claro. São como marcos colocados precisamente no centro do caminho: marcam o caminho, mas obrigam-nos a pequenos desvios, torções do corpo, atrasos que se acumulam. Demora a descobrir que os sentimentos podem ter o mesmo aparente nome, o mesmo sabor, mas diferente viscosidade, como o líquido que jorra gémeo da taça da Temperança. Escorre e esvai-se a diferentes velocidades sobre os nossos corpos, diferentes, difusos, em desunião inconstante. Esgotar-se-ia antes no teu.
Quereria ter mexido bem lá dentro, por dentro dos teus átomos, à escala femtométrica, com cócegas de luz a reescrever-te o toda tua. Se pudesse ter dedos à échelle courte, falaria das minhas unhas roçando em cada 10-15 de ti (posso dizer-te “um quindionésimo” à boca da orelha?). Até bater com os cornos na largura de Planck e, quem sabe, atravessar esse imenso mínimo muro. São tudo tormentas tranquilas. Andássemos para aí a sementar e tivesse eu o nariz virado para cima a ver o tempo e quanto mais tinha adiado?
Se pudesse ver um outro mundo pela ficção onde te resgatasse, mergulhava na planura dessas páginas. Imaginemos então uma civilização do tipo 7, na escala de Kardashev, em que a rosa do esquema de desenvolvimento parece completa. Haveria um todo completo mesmo? Um tudo possível? Ou mais limites ainda em que esbarrar e superar? Voltar-se-iam em experiências limitativas, estorvos impostos a si-mesmos, recontar os passos pelo tempo fora, como o Anjo que quer arrumar o lixo mas não consegue devido ao vento? Pelo menos distinguíramos as super-novas por novos sabores detectados pelas línguas e suas virtuais exo-dendrites. E concordaríamos em relação a azuis ou a músicas. Não interessa palrar protoficciocientificamente... Pois mesmo assim, levantaste-te e disseste, “vou-me embora”.
Como dizem os franceses, malheuresement, “em má-hora”, assim mesmo com um hífen que sabe a arpão. E as coisas têm de chocar e penetrar-se umas às outras para seguirmos caminho afinal. Os marcos colocados no centro são bem-vindos Se não existissem esses choques, esses desvios, o clinamen de Lucrécio, “choveria no abismo do espaço.”
O romance não continua, mas o seu mau início confirma-se, e continua a chover. Não faz mal. Molho-me. As horas cinzentas servem para isso mesmo e a música é uma arte podre.

Montesinos. As Mulheres de Dário. Uma mulher de nome talvez exótico.

Era o mesmo que uma flor exótica num jardim de banalidades, ou uma flor que nos é comum num jardim longínquo. Ou como uma pessoa de um outro país, entre nós, mais o seu nome impronunciável, banal no seu país. Quer dizer, não era raro, nem estranho, nem inusitado: simplesmente colocado num contexto contra o qual se destacava brilhante.

quinta-feira, julho 07, 2005

Strafkolonie. Jacintos.

Agora encontrava-se mais calmo. Apesar de não ter tido fome, comer ajuda sempre a uma espécie de moleza com que se sente confortável. Não se obriga a contrariar a ausência de desejo, é um movimento natural da inércia a que se devota diariamente.
Antes, no desespero de não ter conseguido arrastar tudo, suava, muito, limpando a testa com a ponta dos dedos e logo as costas das mãos, que ganhavam assim reflexos de gordura sebosa. E era também como se suasse por dentro e o pequeno dilúvio arrastasse qualquer pensamento possível. Concentrar-se em tão turbulentas águas?, irrealizável.
Soluçou sem som, como os choros de uma criança depois de chorar muito, já no final da resignação. Teria sido capaz de ter dado um grito, ou esmurrar a parede com os nós dos dedos. Não se feriria, claro. A raiva traz sempre uma capadura de protecção, desabituada. Não fosse o lembrar-se ter visto nalgum dia um carrinho de rodas, no qual Adriana costumava amarrar a mala enorme para viajar.
Funcionara, e tudo estava bem. Jacinto fazia dissipar com as últimas colheradas de iogurte os momentos em que sofrera com o medo. Ele sabe que os sonhos são estados em que as acções cumpridas se fazem com um zelo e um pormenor inigualáveis, tudo envolto por uma precisão e naturalidade que não existe na vigília. Há, porém, uma total ausência de fins compreensíveis. Jacinto pensava assim, e ponderava se não teria experienciado, não pela primeira vez, um estado misto de vigília e sonho.
Quando acordara essa manhã, tudo parecera igual. O som pouco distante do mar, as ondas subindo às costas umas das outras, e todas galgando as rochas. A bicicleta do Jorge passando ao largo. Um grulho ou dois de uma pardela ou um painho. Estão apenas de passagem nestes ermos, mal acabe o Verão não se ouvirão mais. Dera-lhe a espertina. A diferença marcante residia em detalhes quase invisíveis. Mas Jacinto estava treinado. Treinara durante anos. Em silêncio, em segredo, afastado de todos, um ideal muito pessoal, impartilhável. Por exemplo, ontem. Das portadas-janelas da sala via-se todo o céu por sobre o mar. Adriana e ele estiveram durante umas horas sentados no sofá. A ler, a beber mazagrin e a ouvir uns discos novos. Um momento típico de fim de Verão, inócuo, de artigo anódino de revista anódina. Sobre o mar, nuvens.
Um olhar treinado vê sempre mais além, entende textos onde outros vêem gatafunhos. Estratocúmulos pouco consistentes pairavam sobre o mar, e um avião passara, cortando-os e fazendo um ângulo agudo apontando a noroeste. Pouco depois, antes de esta esquina aparentemente adregada se dissipar, um bando de pardelas voava, naquele planar que lhes é costumeiro, interrompido por um agitar de asas brusco e curto. O bando compunha-se num voo triangular e encaixou nessa esquina. As barrigas brancas num corpo negro lembravam as ondas rebentando à noite nos rochedos ao largo da praia, bruscos brancos na noite. Entenda os sinais quem puder. “Os pássaros são a força inspiradora com que os homens desvendam discursos sábios e prevêem muitos êxitos antes de ocorrerem no seu esplendor.” Assim o diz Hildegarda de Bingen no seu Livro das Subtilezas.
Na sala, descrevia sempre os mesmos gestos, com pequenos maneirismos diversos, como se fosse obrigado por uma força magnética a ao sair fora de certos limites virtuais, de uma coreografia ritualista. A rotina ou a memória garantiriam uma maior segurança, confiança, quem saberá, da solidão que o oprimia. E esta manhã não tinha sido diferente. Não era aí que estava a diferença.
É dos mais fecundos momentos o da praia do retorno dos Sonhos. É já manhã, o corpo e a mente preparam-se para acordar e oferecem um pequeno entrementes que impeça a preocupação da aterragem. Uma história inevitavelmente a interromper, ma mesmo assim que possui mais que uma ou duas sementes aproveitáveis para o resto do dia, ou quem sabe, com sorte, durante mais tempo. Jacinto lera numa revista qualquer que os sonhos se processam apenas nos últimos segundos do sono, por isso nunca terminavam. Fazia sentido. Mas também sabia que depende da natureza do sonhador o que eles podem garantir.
Foi tudo rápido, exactamente com a velocidade que é peculiar dos sonhos. Como se fosse um hábito, escolhera o utensílio correcto, fascinara-se num breve segundo pelo reflexo limpo que fazia com a luz que entrava pela cozinha (lembrava-lhe um relâmpago de bom auspício, como se precisasse de tempestade para velejar), retornar ao quarto, debruçar-se sobre Adriana e segredar-lhe o que deveria ter segredado há muito. Ela não acordara. Como uma estátua respirando num sonho. Minha estátua de marfim, sou teu Pigmalião. Marfim, alabastro, lírio, nívea, alvura, bragal, ...ébano. Não, claro. Não é distracção de Jacinto. A comparação tinha sido tola. A pele de Adriana em nada se aparenta ao marfim. Tem a cor e a força dos troncos dos zambujeiros em frente à casa. Crestada de nascença, era uma mulher que ostentava sempre o que o sol tem de melhor. E ficava-lhe bem o último colar vermelho. Um quase imperceptível contraste...den ewigen Schlaf schlafen.
É notória a elasticidade do conceito de solidão. E se existem muitos medos humanos, nenhum é tão assustador como o é a solidão absoluta, além-humana. Independentemente da companhia, na curva da morte. Que conforto pensar que não estamos sozinhos. Como se uma montanha rodeada de fantasmas ganhasse uma maior vitalidade. Montanha à beira-mar e fantasmas de aves brancas que fazem o ninho em despenhadeiros.

Ela vestida de Eva e eu de Adão, estreámos a areia da praia mais próxima. Nem as patas de aves estavam marcadas na areia seca. E seriam as nossas pegadas também as últimas a serem apagadas mais tarde, já o sol mergulhado
Este canto do mundo quando as nuvens se engrossam como vacas grávidas de vermelhas tempestades escondidas, e quando troveja, troveja mesmo. São fortes e passageiras as chuvadas, e temos sempre medo de nos molharmos
Os contornos das nuvens brancas eram nítidos nas frondes, mas na parte inferior, na base, graduava-se num azul esbatido como o do próprio céu, fundindo as fronteiras numa inconsistência dúctil.
Foi preciso que o vento atravessasse uma lança pela cabeça de um efebo amaricado para dar nome a uma flor?

Na noite anterior, Adriana tinha-o recebido ternamente. Não fora a vez mais apaixonada em que se enlaçavam, decerto. Jacinto não acreditava que os fogos aguentassem o fervor durante muito tempo, mas acreditava que se pudessem manter acesos de alguma forma. Na noite anterior talvez não houvesse amor, mas ternura certamente. Adriana recebera-o, e ela aceitara ser recebido.
O abismo que Adriana fora há muito tornara-se seguro, demasiado seguro talvez. Enseada Amena. Nada mais. Os marinheiros sem medo. As sirenes roucas. Dedit abyssus vocem suam. Uma voz poderosa, feita de temporal amarrado às rochas, apenas vinha do outro lado da casa. Há duas semanas que não trovejava. A segurança era absoluta nestes ermos... da sala podem-se ver pedras amontoadas ao acaso que se queiram passar por muros. São apenas baixas barbacãs antepostas ao grande abismo... Segurança absoluta. Mas nunca das tormentas que rebentam por dentro.
O vento acabava de curvar, afastando-se do Estio. Os jacintos à porta de casa estremeceram. E Jacinto segue pelo passeio, sem se aperceber da última consonância.