Corpo de texto: fragmentos.

sábado, junho 25, 2005

Tosse Convulsa. "Por razões crepusculares..."

Por razões crepusculares, a nossa total inépcia
de englobar o oceano inteiro no nosso corpo,
seja pelo olhar ou outro modo liminar,
consolida-se numa contínua pretensão, ou mais,
uma presunção, em inventar delírios capazes de
retransmitir essas mesmas percepções numa capaz,
transmissível e ecuménica língua. Entre uma coisa e
outra, a total ignorância sobre as tendências que
regulam a matéria, viesse o diabo e escolhesse...
como se os julgadores não fossem deste mundo
quem instituem as permutas de dessintonias várias,
numa investigação que chegará, algures (ou nenhures)
e nalgum (ou nenhum, tudo num “fora”) tempo,
a uma só Figura. Síntese simples e conclusiva,
facto de fronteira, quesito ou formulação
de direitos sobre o impedir da razão: nitidez
atomística que não devem ao rigor qualquer
conjunto prévio de benesses. Deixar-se estar
espraiado no fio do horizonte como se numa
borda da cama, vendo quem se ama a sair do
banho, cabelos a escorrer numa secante aos
círculos que o sol desenha por entre os vidros.

Trovoada. O Último Voo dos Pássaros.

O sol ainda não se pôs totalmente do outro lado do dia, e a nitidez dos contornos das coisas torna-se mais forte, nos poucos e preciosos momentos do encontro dos nossos olhos nocturnos com os diurnos. Caminhava pelo passeio, em direcção ao cais, do qual se atingia também a estação de comboios, onde se tivesse sorte apanharia o último comboio de volta a casa. Tinha que atravessar o pequeno jardim público, com variadas árvores protegidas por baixas cancelas pintadas de verde velho, e bancos de madeira que nunca foram confortáveis, mas menos nos dias em que conhecemos outros luxos. Por cima dos renques, nuvens que se concentravam e logo distendiam de pássaros volitavam. Resolveu parar e observar essa pequena mancha meio negra, meio diáfana que preenchia o céu imediato. O comboio poderia esperar. Tudo poderia esperar. Ele próprio esperou que os pássaros se cansassem de voar, e de chilrear alto como o faziam agora, e não paravam ao poisar nos seus ramos e ninhos, respectivos, desconfiando, acrescentou ele. Aos poucos, depois deste último voo, os pássaros foram-se calando, um hino de despedida ao sol, que já apenas iluminava de rosa armagedão os longes do horizonte. Um trino, uma frase pequena, fraca. Uma outra nota. E nada mais, apenas a noite. Todo o mundo terminara.

Montesinos. As Mulheres de Dário. Eduína. Os lábios.

Os lábios dela eram curvados para fora, quase em paralelo com o solo, sobretudo entre-lábios. Suava, e pequenas pérolas de suor ficavam presas no bigode louro e baloiçava nessa pequena ponte e plataforma. Dário beijou-a, sorvendo a água, que era salgada como lágrimas.

Montesinos. Vitrúvio. Geografia. Rio Anigro.

Nas margens do rio Anigro cresciam ervas amargas que provocavam os mais díspares efeitos, todos eles terríveis: vómitos, abortos, cegueira, e morte. Os poucos peixes que nele vogavam eram incomestíveis. A etimologia mesmo apontava essa condição insólita, apontando os seus cultores o vocábulo do vitruviano antigo an-egré, “veneno” como procedência.

Montesinos. Vitrúvio. Geografia. Via Stellis.

Da pequena colina a sul de Vitrúvio, que descia até ao rio e era das poucas áreas verdes deixadas intactas na cidade, erguia-se o que restava da antiga Via Stellis, cujos indícios eram apenas marcados pelos pedaços de arcos que pareciam brotar da terra como excrescências despropositadas mais do que o que restava de antigos e esplendorosos edifícios que tinham sido alguma vez planeados e construídos por homens. Eram ainda gloriosos, de uma forma estranha, um passado gasto e quase imperceptível, mas cujas capacidades da imaginação dos seus espectadores faziam varrer-se pela ideia de um caminho recto e assombroso, mesmo que consumido pelas eras. Alguns desses pedregulhos erguiam-se mesmo nos bancos do rio, lembrando a ponta que levaria ao palácio de Ustres, demolido pelo fogo de há três séculos e sucessivas guerras, brotando das águas como totens a deuses antigos, marinhos, inomináveis, nas fantasias dos mais lestos em termos do sagrado.